A revista Trip do mês de junho passado tem na capa o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, levantando, mais uma vez, a polêmica sobre o uso da maconha e divulgando o novo documentário, Quebrando o Tabu, no qual traz a tona o debate em torno da regularização das drogas e, principalmente, a questão da maconha.
Segue um trecho da entrevista que FHC cedeu a revista. Abaixo o texto é de Sônia Bridi para o Fantástico.
Um ex-presidente da república roda o mundo, grava um documentário e levanta uma bandeira bem polêmica. Segundo ele, o consumo de maconha deveria ser regulamentado. O líder do PT na Câmara dos deputados, Paulo Teixeira, já defendeu publicamente até a formação de cooperativas para o plantio de maconha. Agora, o ex-presidente, Fernando Henrique Cardoso, prestes a completar 80 anos conduz um documentário que defende a descriminalização do uso de drogas e a regulação do uso da maconha. Para ele, “as pessoas não tem coragem de quebrar o tabu e dizer vamos discutir a questão!”
No filme Quebrando o tabu que já estreou nas salas de cinema FHC e ex presidentes do México, da Colômbia e dos Estados Unidos como Jimmie Carter e Bill Clinton, reconhecem: falharam em suas políticas de combate as drogas. Quando questionado o por que de não ter sido implementada tal política em seu governo, FHC rebate: “primeiro porque eu não tinha a consciência que tenho hoje, segundo porque eu também achava que a repressão era o caminho”.
Todos concluem que a guerra ao combate as drogas iniciada há 40 anos é uma guerra fracassada, bilhões de dólares são gastos no mundo inteiro, mas o consumo cresce, e cresce o poder do tráfico espalhando a violência. As armas apreendidas dos traficantes no Rio de Janeiro são a prova de que a policia trabalha “enxugando gelo”.
É preciso ir além das apreensões de drogas e do combate aos traficantes. O diretor do documentário Fernando Grostein Andrade afirma: “o ponto central é questionar a lógica de guerra, não é defender o uso da droga, é apenas dizer vamos pensar se não tem jeitos mais inteligentes e mais eficientes de lidar com esse assunto”.
Na lista das drogas mais perigosas da revista médica Lancet, respeitada no mundo inteiro, a maconha aparece em 11o lugar no ranking. Bem atrás do álcool e até mesmo do cigarro que são vendidos legalmente. “Álcool é mais letal do que a maconha, e não se diz isso, mas é!”
Regular não é o mesmo que legalizar. E foi isso que Fernando Henrique Cardoso descobriu indo pra Holanda. Lá a maconha é vendida em cafés, mas o governo não legalizou o uso indiscriminado. Funciona assim, a regulamentação determina que você não pode consumir nas ruas nem vender fora dos cafés. Nos locais determinados fuma-se maconha sem repressão policial. Lá o consumo de maconha é tolerado e, mesmo assim, vem caindo.
De acordo com Fernando Henrique Cardoso em seu documentário, “ a maior parte dos que usam droga querem se safar, querem sair da situação de droga e a existência de um caminho que não os leve a cadeia, mas se leve a um tratamento é positiva”. O Dr. Elisaldo Carlini (médico especializado em drogas pela UNIFESP) alega: “é um caso de saúde, não um caso de policia”.
Mas qual é a estrutura que o Brasil tem hoje para tratar seus dependentes? As pessoas ficam perambulando pelo sistema de saúde, pelas ruas, principalmente os usuários de crack, e nós, ficamos desassistindo ativamente essa população.
O ministério da saúde já fez as contas do que falta para tratar dependentes químicos: 3.500 leitos hospitalares, 900 casas de acolhimento, 150 consultórios de rua, para chegar as cracolândias, por exemplo. Mas a previsão é atingir essa meta só em 2014.
O documentário dá uma pista de que campanhas de prevenção abertas e honestas podem funcionar. Vê-se no depoimento de Paulo Coelho, escritor e ex-usuário de drogas: “o grande perigo da droga é que ela mata a coisa mais importante que você vai precisar na vida, é o teu poder de decidir. A única coisa que você tem na sua vida, é o seu poder de decisão. Você quer isso, ou você quer aquilo. Seja aberto, seja honesto. Diga isso, realmente a droga é fantástica, você vai gostar... mas cuidado, porque você não vai poder decidir mais nada! Basta isso.
Trailer do documentário: Quebrando o Tabu um filme de Fernando Grostein Andrade
Trechos da entrevista do ex presidente da república Fernando Henrique Cardoso para a revista Trip
E o que o senhor descobriu quando começou a estudar o assunto?
Quanto mais eu e os outros líamos, mais chegávamos à conclusão de que a guerra às drogas era falida e que o objetivo de zero droga é inalcançável. E, por isso, era preciso buscar outra abordagem, outra estratégia para tratar do assunto. Nossa comissão latino-americana há uns três anos lançou um documento que teve muita repercussão no mundo. O que dizia era mais ou menos o seguinte: os recursos estão todos concentrados em destruir a produção e combater o tráfico. Mas nada é feito para lidar com os efeitos na sociedade e em quem usa. Nada era feito de fato para reduzir o consumo. Com o cigarro, por exemplo, houve um esforço grande e caiu o consumo. E depois descobri que é preciso reconhecer que as drogas são múltiplas, e os efeitos não são homogêneos. Desde cigarro, álcool, maconha, heroína, cocaína. Vários mitos desabavam diante das pesquisas.
Que mitos, por exemplo?
O de que o uso de uma droga leva, necessariamente, a outra. Não é verdade. Vocês podem ver no filme que a ex-presidente da Suíça dá um depoimento mostrando que o que leva de uma droga a outra não é o consumo, mas o mercado. É o traficante que induz. Outro mito que pude verificar pessoalmente em viagens é o de que existem drogas leves e pesadas. Sim, umas são mais pesadas do que outras, mas depende muito mais do tipo de uso que se faz. Se você acorda já fumando maconha é complicado. Se você acorda bebendo cachaça é ainda mais grave. Mas se você toma uma cachaça de vez em quando é bem mais tranquilo. O mesmo se aplica a maconha, heroína, cocaína… Então precisamos ter uma visão mais sofisticada sobre isso se quisermos, de fato, reduzir as consequências negativas. (…)
Mas sofisticar a informação não basta sem uma mudança legal na hora de diferenciar uma droga da outra. Como o senhor encara a questão da maconha, especificamente?
Isso não é simples. Primeiro temos que descriminalizar o usuário. Mas mesmo na hora de diagnosticar o que é usuário e traficante é complicado. Porque todo usuário, uma hora ou outra, acaba sendo um pequeno traficante. Como o acesso à boca de fumo é ilegal, alguém que se arrisca aproveita e também pega para os amigos. Então isso cria uma teia de ilegalidade que é melhor acabar. Pelo menos no caso da maconha. Minha opinião é a de que a maconha pode ser tratada de forma diferente. Isto é, regulada como é o álcool e o cigarro.
Isso vai bem além de descriminalizar o uso. Regular significa criar formas de produção e venda permitidas por lei, certo?
Uma coisa leva a outra. A opinião pública não aceita as ideias de uma vez. A gente precisa criar efeitos em cadeia. Quando você discute drogas, é fácil convencer uma pessoa de que o usuário não deve ir para a cadeia e que ele precisa de tratamento médico. Com isso quase todos concordam. Mas, no caso da maconha, a pessoa não requer tratamento. Em seguida, você tem que perguntar: e o que fazer agora? Ninguém pensa em liberar totalmente o uso. Mas, quando você vê os fatos, na verdade a maconha é menos danosa do que o álcool e o cigarro. Agora, vamos supor que ela seja colocada na mesma categoria desses dois. Ora, você não vai liberar álcool e tabaco para menores de idade. Em certos países existem restrições mais drásticas em relação às bebidas. Hoje, em São Paulo, se você fuma precisa ir para a rua acender um cigarro. Há 15 anos todo mundo respirava o mesmo ar infecto do cigarro. Antes fumar era sinônimo de glamour, agora não é mais. Isso vem de uma regulação maior. Mas alguém produz o álcool, o cigarro, alguém os vende.
Como poderíamos criar um mercado regulado de maconha?
Tem mil caminhos. Não há uma receita. Isso tem que ficar bem claro. Nada resolve. Nada acaba com o uso nem com os malefícios que ela possa causar. Mas precisamos criar maneiras de reduzir os problemas. E tem muitas experiências nas quais podemos nos espelhar. Em Portugal, a descriminalização e, na prática, a não perseguição ao usuário deram certo.
Mas Portugal não tem um modelo de produção e venda de maconha. O tráfico continua.
E isso é o que precisa ser discutido aqui. Uma coisa é o uso da droga e o que isso causa no usuário. Outro é o tráfico que gera violência. Em Portugal o tráfico não está atrelado à violência. Na Holanda eles podem vender, cobrar impostos nos coffee shops, mas a maconha entra no país ilegalmente. O Estado fecha os olhos à ilegalidade. Eles dão uma justificativa: “É melhor resolver metade do problema do que nem a metade”. É verdade. Mas vai para o México ou para uma favela carioca. A violência é o problema mais grave e vai continuar sendo. E não podemos realmente deixar o tráfico prosperar. Então não dá para aplicar a mesma receita igualzinha de um país para outro. No Brasil eu iria com cuidado. Faria alguns experimentos. Precisamos discutir e, na hora que descriminalizar o uso, poder perguntar: e quem produz?
E, na sua opinião, quem produziria?
Cooperativas, autorizações para produção em pequena escala, jardins particulares para uso pessoal. Alguma coisa assim deveria ser experimentada para ver se a coisa anda. As estatísticas mostram que 80% dos que usam droga usam maconha. E, como ela é a menos daninha, menos que o cigarro, é razoável que a gente a separe das demais, para tirar essa receita do tráfico e concentrar o combate nas outras drogas que são mais perigosas. Essa é a discussão. E há no Brasil certo cinismo quando se discute isso… Porque o acesso à maconha aqui é amplo. E isso é errado. Não tem critério nenhum. Qualquer um consegue.
É como se fosse liberado.
Exatamente. Ontem mesmo estava ouvindo no rádio que estavam vendendo livremente maconha em uma escola. E pior, o cara que vende não vende só maconha… Isso é um problema social grave para o qual não podemos mais fechar os olhos.
0 comentários:
Postar um comentário